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A Atividade do Estado e o Projeto de Lei nº 4.302/98.

Por Bruno Borovina Balija

O Projeto de Lei nº 4.302/98 foi aprovado no dia 22/03/2017 pela Câmara dos Deputados e segue para a sanção presidencial. O projeto propõe algumas alterações na redação da Lei Federal nº 6.019/74 que dispõe sobre o trabalho temporário, terceirização e temas correlatos. Sem sombra de dúvida, a modificação mais controversa trazida por esse projeto é a possibilidade terceirização das atividades fim das sociedades empresárias e inclusive – há quem argumente – do Estado.

A extensão da aplicação desse Projeto de Lei às atividades estatais vem da alteração sugerida ao Art. 5º da Lei Federal nº 6.019/74, que passará a ter o seguinte texto:

Art. 5º Empresa tomadora de serviços é a pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada que celebra contrato de prestação de trabalho temporário com a empresa definida no art. 4º desta Lei.

A redação “pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada” é ampla o suficiente para dar abertura à interpretação de que estarão incluídos nessa classificação de empresa tomadora de serviços quaisquer entes ou órgãos do Estado, dotados de personalidade jurídica ou não.

Ocorre que, para o Estado, o tema de terceirização torna-se especialmente polêmico, principalmente caso o particular não tenha as informações necessárias para enfrentá-lo. Por essa razão vale esclarecer sucintamente alguns pontos relevantes, resignando qualquer juízo de cunho político.

A discussão gira em torno da terceirização de atividade fim de entes e órgãos estatais. Caso o Presidente sancione o Projeto de Lei nº 4.302/98, estaria então a Administração Pública autorizada a celebrar contratos com empresas terceirizadas para substituir servidores públicos em suas funções?

Em tese, não.

Isso se dá porque a terceirização de atividade fim no setor público encontrará alguns entraves tanto normativos e sistêmicos quanto jurisprudenciais, trazidos como produto das reformas pelas quais nossa máquina administrativa passa desde 1967 e da Constituição Federal.

No âmbito Federal, O Decreto-Lei nº 200/1967 que estabeleceu a Reforma Administrativa prevê, em seu Art. 10, §7º:

Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada.
(…)
7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

O dispositivo acima quer dizer o seguinte: a Administração Federal poderá se valer da iniciativa privada para atender ao que chama de “tarefas executivas”. Esse Art. 10, §7º foi posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 2.271/1997, que dispõe sobre a contratação de serviços pela Administração Pública Federal e prevê, extensivamente, a limitação da “execução indireta” de atividades estatais a funções acessórias, instrumentais ou complementares.

É dizer, em análise macroscópica, nosso sistema administrativo converge no sentido de que a atividade fim da Administração Pública não é passível de terceirização. Inclusive, esse entendimento coaduna com a interpretação dada pelos Tribunais Superiores e Tribunais de Contas[2] ao Art. 37, inciso II da nossa Constituição Federal de 1988, que diz o seguinte:

Art. 37 (…) II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; 

– Grifo nosso –
Assim, conforme o entendimento predominante aplicado pelos respectivos órgãos julgadores, os funcionários da empresa terceirizada que eventualmente viessem a exercer atividade fim da Administração, estariam em posse do cargo público sem terem sido submetidos a concurso público, em afronta expressa ao texto constitucional.

Ressalta-se que o fato de haver obstáculos sistêmicos e constitucionais à terceirização da atividade fim do Estado não implica dizer que, necessariamente, ela não será praticada, afinal a Constituição Federal nem sempre predomina sobre a vontade política ou institucional no Brasil. O que se pretende ilustrar são os óbices jurídicos que essa decisão política enfrentará, mesmo após a sanção presidencial.

Em razão do exposto, verifica-se que caso a Administração Pública resolva implementar a interpretação extensiva do Art. 5º mencionado no início deste texto, terceirizando partes do serviço que correspondem a atividades-fim dos respectivos entes e órgãos estatais, muito provavelmente será alvo de interferência judicial abundante. Isso porque o nosso sistema normativo e a nossa constituição preveem dispositivos que vedam a terceirização de atividade fim da Administração, e a jurisprudência é uníssona no sentido de reforçar essa prerrogativa. Agora, caso se mantenha a aplicação da Lei Federal nº 6.019/74 apenas para sociedades empresárias, nada será alterado na relação entre o Estado e os particulares que celebram contratos administrativos, dado que a terceirização nesse meio permanecerá sendo sujeita à Lei Federal nº 8.666/93 e à Súmula 331[3] do TST.

[1] Nesse sentido, cf. STF, Pleno, Recurso Extraordinário (RE) nº 658.026, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 31.10.2014: “A imposição constitucional da obrigatoriedade do concurso público é peremptória e tem como objetivo resguardar o cumprimento de princípios constitucionais, dentre eles os da impessoalidade, da igualdade e da eficiência”
 [2] Nesse sentido, cf. TCU, Plenário, ACÓRDÃO 2132/2010, Relator Ministro AUGUSTO NARDES, DJe de 25/08/2010: “ RELATÓRIO DE AUDITORIA. FISCALIZAÇÃO DE ORIENTAÇÃO CENTRALIZADA. VERIFICAÇÃO DA CONFORMIDADE DOS CONTRATOS DE TERCEIRIZAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA NAS EMPRESAS ESTATAIS. CONSTATAÇÃO DE TRABALHADORES TERCEIRIZADOS OCUPANDO POSTOS DEVIDOS A EMPREGADOS CONCURSADOS. AFRONTA AO ART. 37, INCISO II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SITUAÇÃO VERIFICADA PELO TRIBUNAL EM OUTRAS OPORTUNIDADES. FALTA DE REGULAMENTAÇÃO DA MATÉRIA PELO PODER EXECUTIVO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO DECRETO Nº 2.271/1997 E DO ENUNCIADO DA SÚMULA TST Nº 331. RECONHECIMENTO DE PARTICULARIDADES AFETAS ÀS EMPRESAS ESTATAIS RELACIONADAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA. NECESSIDADE DE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE DIANTE DO CASO CONCRETO. DETERMINAÇÕES. CIÊNCIA A DIVERSAS AUTORIDADES DOS PODERES EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO. ARQUIVAMENTO. Salvo disposição legal ou regulamentar em contrário, os contratos de terceirização de mão-de-obra no âmbito das empresas estatais devem se orientar pelas disposições do Decreto nº 2.271/1997, em conjunto com o entendimento perfilhado na Súmula TST nº 331, reservando-se as funções relacionadas à atividade-fim da entidade exclusivamente a empregados concursados, em respeito ao mandamento expresso no art. 37, inciso II, da Constituição Federal de 1988.”
[3] Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
 II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
 III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
 IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
 V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

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