Imagine que você doou seu carro velho para um sobrinho. Por ser uma doação, ninguém achou que seria necessário colocar algo por escrito. Tio e sobrinho moravam em cidades diferentes e a transferência da propriedade no cartório foi adiada. Acabaram se passando semanas e, neste meio tempo, o sobrinho ingrato levou cinco multas.
Imbroglio número dois: uma empresa doou para uma instituição pública de ensino e pesquisa equipamentos que se tornaram obsoletos e foram substituídos por outros mais modernos. A ideia era apenas fazer o bem. Por ser só uma doação, foi feita no fio do bigode. Posteriormente, a publicação de uma pesquisa da donatária, cujos resultados favoreciam um produto fabricado pela empresa doadora, levou esta última a ser questionada por tentativa de favorecimento.
Perceba-se que o fato da doação pura e simples não envolver valores não significa que não precisa ser revestida de uma certa formalidade, para proteção do próprio doador. É mais fácil perder algumas horas com a negociação e assinatura de um documento escrito do que ter que correr atrás do prejuízo depois, confiar na memória – a sua e a dos outros – e ter que explicar que focinho de porco não é tomada.
Uma doação pressupõe uma série de requisitos e até de limitações e restrições legais, que podem inclusive torná-la inválida ou nula. Assim, por exemplo, uma doação de pais para filhos pode constituir adiantamento de legítima e a doação de um devedor insolvente pode ser anulada judicialmente. E, dependendo do valor do bem, a doação tem que ser necessariamente feita por documento escrito.
Mas ainda que você não acredite que a sua doação implicará este tipo de consequência, fazer um documento escrito é bastante recomendável. E o que deve conter este documento?
Primeiro, é interessante deixar clara a finalidade da doação. Que se trata de uma ação desinteressada, de dar a outrem sem estar obrigado, por boa vontade ou mera liberalidade. Ou seja, deixar claro que a doação não traz contrapartidas por parte do donatário, que possam trazer surpresas desagradáveis para o doador, como no caso da empresa do exemplo.
Também é bom incluir que o donatário declara ter sido informado pelo doador que a doação não lhe obriga a aprovar, adquirir, usar, prescrever, recomendar produtos do doador, nem a exercer influência sobre ato de caráter público ou privado que beneficie o negócio do doador, ou ainda a influenciar os resultados de qualquer estudo que envolva produtos ou serviços do doador. Em linhas gerais, que nenhum privilégio ou benefício será concedido pelo donatário ou por qualquer entidade a ele relacionada ao doador em razão da doação.
Outro ponto importante é fixar a data em que foi feita a doação e um prazo para a aceitação da doação pelo doador. Se houvesse data definida e aceitação formal do sobrinho donatário, no exemplo acima, o doador teria mais chance de obter o ressarcimento do valor das multas e de não “estourar seus pontos”. Se não for possível datar a doação, recomenda-se fixar um prazo para o donatário aceita-la e, caso não o faça, presume-se aceita a doação.
Por fim, de modo geral, é recomendável excluir as responsabilidades do doador sobre o bem doado depois da doação. Assim, se for encontrado um vício ou defeito, o problema passa a ser da pessoa ou entidade que recebeu o bem doado. Se este bem necessitar de conserto, trocas de peças ou manutenção preventiva ou corretiva e o doador não tiver a intenção de prestar estes serviços futuramente, é bom deixar isto claro no contrato.
Luciana Guimarães Betenson
Advogada do ZMB Advogados que atua em Contratos Comerciais, Direito do Consumidor, Direito Regulatório e Conciliação e Mediação Empresarial e do Consumidor