Consumidor, Contratos, Societário por MB Advogados

Medida Provisória 881/2019 e as novas disposições do Código Civil

I – INTRODUÇÃO

 

Foi aprovada pela Câmara dos Deputados, na noite do dia 14/08/2019, a Medida Provisória nº 881/2019, alcunhada de MP da Liberdade Econômica, que tem por objetivo reduzir a burocracia estatal e reduzir a interferência do Estado no âmbito da esfera privada, não somente entre o particular com a Administração Pública, mas também no exercício das atividades empresariais na órbita das relações privadas.

Para tanto, o mencionado Estatuto Legal, elaborado pelo Poder Executivo Federal, promove uma série de alterações no texto-base do Código Civil de 2002.

Todas as modificações instituídas pela MP 881/2019 possuem a clara finalidade de aumentar a segurança jurídica nas relações privadas, especialmente nas denominadas “interempresariais”, e também reforçar o princípio do pacta sunt servanda, que muitas vezes vinha sendo esquecido pelos operadores do direito, especialmente por aqueles responsáveis pela efetiva aplicação das normas de direito privado nas contendas levadas ao Poder Judiciário.

Logo de início, no artigo 1º, § 1º, do diploma legal em comento, prevê-se que “o disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”.

Infere-se, do dispositivo acima transcrito, que a regras hermenêuticas trazidas pela MP 881/2019, à priori, não terão qualquer influência sobre a interpretação relativa às normas do Código de Defesa do Consumidor e, sendo assim, a legislação consumerista, como lex specialis, continuará sendo aplicada em consonância com suas atuais disposições.

No que tange ao Código Civil, as alterações implicarão em novidades bastante importantes, especialmente no que tange à interpretação das regras contratuais decorrentes de negócios privados formalizados entre particulares e, sobretudo, no que se denominou de relações interempresariais.

Vale destacar, também, que foram inseridas no capítulo relacionado ao Direito das Coisas disciplina que até então não existia, atinente aos Fundos de Investimento.

Passemos, assim, a analisar cada uma das alterações efetuadas no Código Civil, promovidas pela MP das Liberdades Econômicas.

 

II – DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

 

Com relação ao que dispõe o artigo 50 do Código Civil, a MP 881/2019 introduziu no texto legal parágrafos subjacentes ao referido dispositivo, positivando no ordenamento jurídico o entendimento jurisprudencial que vinha sendo cristalizado pelo Poder Judiciário, sobretudo nos julgados do Superior Tribunal de Justiça, criando balizadores legais para que a “desconsideração da personalidade jurídica” possa ser efetivada no caso concreto.

A alteração de maior relevo se encontra, justamente, no primeiro parágrafo que passa a constar do artigo 50 do Código Civil, que prevê o dolo como elemento essencial para o reconhecimento de desvio de finalidade, para que se possa levar à despersonalização da pessoa jurídica. Em outras palavras, os credores deverão provar que os sócios e administradores da sociedade empresarial agiram dolosamente com o intuito de prejudica-los e frustrar a satisfação de seus créditos.

Sem a comprovação do dolo dos sócios e administradores, se tornará impossível o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora, valendo lembrar que o dolo deverá ser provado por quem o alega, em incidente disciplinado pelo artigo 133 e seguintes do Código de Processo Civil, na forma preconizada pelo artigo 373, I, do mesmo Estatuto Legal.

Não que o parágrafo primeiro seja uma inovação em si, mas, conforme acima esclarecido, positivou-se o entendimento que foi cristalizado pela jurisprudência ao longo dos anos, desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002.

Depois, a MP 881/2019 introduz um segundo parágrafo ao artigo 50 do Código Civil, por meio do qual delineia o conceito de “confusão patrimonial” que, literalmente, se configurará nas seguintes hipóteses: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações dos sócios ou do administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e (iii) outros atos de descumprimento de autonomia patrimonial.

Aqui, no que se refere à conceituação de “confusão patrimonial”, muito embora sua configuração clássica tenha sido moldada nos dois primeiros incisos do referido parágrafo segundo, abriu-se brecha para interpretação mais aberta de sua caracterização no terceiro inciso acima transcrito.

No parágrafo terceiro do artigo 50 do Código Civil, a MP 881/2019 previu a denominada “desconsideração da personalidade jurídica inversa”, ou seja, a possibilidade de, diante da configuração do disposto nos dois primeiros parágrafos, de se satisfazer dívidas assumidas por sócios e administradores através do patrimônio das pessoas jurídicas por eles compostas. Nada, também, que já não vinha sendo aplicado pelos tribunais.

Quanto aos parágrafos quarto e quinto, que passam a constar do artigo 50 do Código Civil, veda-se a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pura e simplesmente pela existência de grupo econômico entre sociedades empresariais ou pela alteração ou expansão do objeto social efetivada por pessoa jurídica, uma vez não verificada as hipóteses descritas nos dois primeiros parágrafos, acima comentados.

Em suma, de modo geral, a MP 881/2019 positivou o entendimento jurisprudencial dominante em nossos tribunais para o reconhecimento de confusão patrimonial e desvio de finalidade, o que certamente acarretará na diminuição de pedidos dessa natureza que não possuam fundamento fático e jurídico. E, além disso, evitará decisões judiciais dissonantes do que já vinha sendo cristalizado sobre o tema pelo Poder Judiciário.

E, o mais importante, servirá de norte ao empresário e administrador no que tange à possibilidade de sua eventual responsabilização por atos que praticarem como representantes legais de pessoas jurídicas.

 

III – DO FORTALECIMENTO DO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA

 

Tal qual mencionado na introdução, o objetivo da MP 881/2019 é o de propiciar maior segurança jurídica e menor intervenção do Estado na órbita dos negócios privados.

Para isso, o novel diploma legal, aí sim, trouxe novidades importantes ao Código Civil, com o claro escopo de limitar a atividade jurisdicional nas relações contratuais privadas.

Logo no caput do artigo 421 do Código Civil, estabeleceu-se que toda interpretação contratual deverá se nortear pelo que dispõe a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, ou seja, pelas normas constantes da própria MP 881/2019.

Além disso, enxertou parágrafo único no dispositivo legal em comento determinando ao Estado, por qualquer dos seus Poderes (inclusive o Judiciário), intervenção mínima nas relações contratuais travadas entre particulares, reduzindo, na literalidade da norma, a possibilidade de revisão das disposições assumidas pelas partes nos instrumentos privados por elas formalizados.

Nas normas atinentes aos “contratos de adesão”, introduziu regra de hermenêutica no sentido de que, de modo geral, se não se tratar de “contrato de adesão”, a interpretação das cláusulas contratuais deverá ser mais benéfica à parte que não redigiu o instrumento eventualmente controvertido.

Além das alterações nos artigos supramencionados, que já existiam, a MP 881/2019 inseriu os artigos 480-A e 480-B, ao Código Civil, que tratam de contratos formalizados entre duas sociedades empresariais, possibilitando às mesmas que definam, em instrumento particular, os parâmetros objetivos para interpretação de requisitos de revisão e resolução do pacto contratual, prevendo a presunção de simetria entre os contratantes e a observância dos riscos que as partes assumiram por livre e espontânea vontade.

Assim, conclui-se que, no que tange às regras de hermenêutica contratual, a MP 881/2019 privilegia a autonomia da vontade das partes, a segurança jurídica e a intervenção mínima do Estado, inclusive do Poder Judiciário, na esfera negocial privada, fortalecendo sobremaneira o princípio do pacta sunt servanda.

Em nossa opinião, não existe qualquer paradoxo no axioma mais segurança jurídica, maior a liberdade econômica, muito pelo contrário.

 

IV – DA DISCIPLINA DA RESPONSABILIDADE RELATIVA AOS FUNDOS DE INVESTIMENTO

 

No Livro III (“Do Direito das Coisas”), do Código Civil, introduziu-se o Capítulo X, que cria regras gerais relacionadas a Fundos de Investimento, que deverão ser futuramente regulamentadas pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), relativas à responsabilidade patrimonial de quotistas e prestadores de serviços fiduciários.

A introdução dos artigos 1368-C e 1368-D, passa a permitir que todo e qualquer regulamento de qualquer modalidade de fundo de investimento – além daqueles previstos nas Instruções CVM 555/2014 e 578/2016 – possa limitar a responsabilidade patrimonial dos quotistas ao valor de suas quotas, bem como do próprio prestador de serviços fiduciários, em caso de patrimônio líquido negativo do fundo de investimento.

Essa novidade visa, evidentemente, a propiciar maior segurança aos investidores, aos quais são oferecidos produtos financeiros cada vez mais sofisticados.

 

V – DA APLICAÇÃO DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA MP 881/2019

 

O artigo 6º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (Decreto Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), prevê que “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

A nosso ver, portanto, todas as alterações trazidas pela MP 881/2019, agora ratificadas pela Câmara dos Deputados, já passaram a valer desde a data de sua publicação.

Nenhuma das alterações ou novidades, em nosso entendimento, violou ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada, uma vez que se tratam de normas que carregam tão somente critérios de hermenêutica, sem afetar o direito daqueles que passaram a ser submetidos pela mesma.

 

VI – CONCLUSÃO

 

Ressaltamos, as novidades e alterações introduzidas pela MP 881/2019, com viés claramente liberal, ao prestigiarem a autonomia da vontade das partes e fortalecerem o princípio do pacta sunt servanda, trazem maior segurança jurídica a investidores, empreendedores e às partes contratantes submetidas às regras do direito civil, o que poderá propiciar maior dinamização dos negócios e fomentar o crescimento econômico, o investimento e o empreendedorismo no país.

 

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2019

 

Osmar Berardo Filho

Sócio do escritório NMK Advogados, parceiro do escritório ZMB Advogados

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