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Regulação em expansão: a nova resolução da Anatel e os impactos para marketplaces e data centers

A recente edição da Resolução nº 780/2025 (“Resolução”) pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) representa um marco relevante na evolução da atuação regulatória da autarquia federal. Embora a norma tenha sido oficialmente apresentada como uma revisão do Regulamento de Avaliação da Conformidade e Homologação de Produtos, aprovado pela Resolução nº 715/2019 (“Regulamento”), seus efeitos concretos vão muito além do ajuste técnico. O novo texto traz impactos significativos para o setor de comércio eletrônico e para a infraestrutura de dados do país.

A Resolução introduz mudanças estruturais em 03 (três) frentes principais: (i) a responsabilização solidária de marketplaces pela venda de equipamentos irregulares; (ii) a criação de um regime de certificação para data centers vinculados a redes de telecomunicações; e, (iii) a delimitação de critérios para a homologação de produtos recondicionados. A Anatel justifica a Resolução de regulação de datacenters integrados às redes de telecomunicações (consideradas infraestruturas críticas) e de marketplace e plataformas digitais na necessidade de garantir a segurança das redes, proteger os consumidores e promover um ambiente tecnológico confiável. No entanto, do ponto de vista jurídico, há espaço para questionamento da extensão e dos limites dessa atuação administrativa.

 

1. Responsabilização solidária de marketplaces: a elasticidade do poder normativo

Um dos pontos mais polêmicos da Resolução é a inclusão das plataformas digitais de marketplace — como Amazon, Mercado Livre, Magalu, Shopee, entre outras — como responsáveis solidárias por infrações relativas à comercialização de produtos não homologados junto à Anatel.

A medida determina que esses intermediários passem a verificar, no momento do cadastro de produtos, a existência de certificação válida, bem como a disponibilizar aos consumidores informações completas sobre a regularidade técnica dos itens ofertados, o que inclui a necessidade de exibição do código de homologação nos anúncios. A Resolução também amplia o rol de condutas sujeitas à sanção, já que as condutas descritas nos incisos IV, V e VI do artigo 83 (1)  do Regulamento também abrangerão, além de compra e venda do produto, a aquisição, a estocagem, a oferta, a publicidade, o fornecimento de orçamento prévio e a precificação (2). Em caso de descumprimento, a plataforma poderá ser penalizada conjuntamente com o vendedor.

Embora a intenção de coibir o comércio de produtos piratas ou sem homologação seja legítima, a norma cria, na prática, um novo modelo de responsabilidade objetiva para agentes que, até então, eram considerados apenas intermediários comerciais. Isso altera substancialmente a natureza jurídica das relações entre plataformas e usuários, aproximando os marketplaces da figura de fornecedor direto, conceito previsto no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas que exige cuidado para não ser aplicado de forma genérica ou desproporcional.

A justificativa da Anatel apoia-se em pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e em interpretações administrativas internas, além de precedentes judiciais que, de maneira pontual, reconheceram a responsabilidade de plataformas digitais por danos ao consumidor. No entanto, a ausência de um comando legal expresso que sustente essa obrigação abre espaço para questionamentos quanto à legalidade e à constitucionalidade da medida, sobretudo à luz dos princípios da legalidade, da segurança jurídica e da livre iniciativa.

A responsabilidade solidária aqui tratada e as práticas infracionais entrarão em vigo em 04 de dezembro deste ano.

 

2. O papel da AGU no assessoramento jurídico 

A Advocacia-Geral da União (AGU) é o órgão responsável pela consultoria e assessoramento jurídico da Administração Pública federal, conforme o art. 131 da Constituição Federal. Seus pareceres orientam a atuação dos órgãos e entidades da União, incluindo agências reguladoras como a Anatel. Esses pareceres podem ter efeito vinculante interno, conferindo segurança jurídica à atuação administrativa, mas não têm o condão de inovar na ordem jurídica de forma equivalente a uma lei.

Quando a Anatel utiliza fundamentações da AGU como base para impor responsabilidade solidária a entes privados que não estão legalmente enquadrados como fornecedores, ela transcende a função técnica da regulação e se aproxima da função legislativa, invadindo uma competência que, por definição constitucional, pertence ao Congresso Nacional. O uso reiterado de pareceres para justificar normas com alto impacto jurídico e econômico, sem a correspondente alteração legal, acaba fragilizando a legitimidade do processo normativo.

 

3. Data centers: regulação sem critérios definidos

Outro eixo de mudança introduzido pela Resolução diz respeito à exigência de avaliação de conformidade prévia para data centers que integrem redes de telecomunicações. Trata-se de uma novidade importante, que sinaliza a preocupação da Anatel com a segurança cibernética (3), a continuidade dos serviços e os compromissos ESG (ambientais, sociais e de governança) na infraestrutura digital do país.

A Resolução, no entanto, não trouxe os critérios técnicos para realização de avaliação de conformidade prévia, tendo delegada à própria agência a tarefa de publicá-los posteriormente, no prazo de até 240 dias. 

Ainda que a iniciativa tenha um propósito legítimo, é importante que a Anatel defina tais parâmetros com celeridade, uma vez que a falta de clareza sobre os requisitos técnicos aplicáveis — como padrões de segurança cibernética, continuidade operacional e eficiência energética — pode levar empresas a adiar decisões de investimento até que tenham previsibilidade sobre as exigências que deverão cumprir. Esse tipo de incerteza tende a ser especialmente sensível em um contexto de forte expansão da capacidade digital do país, impulsionada pelo 5G, pela inteligência artificial e pela nuvem soberana.

 

4. Recondicionados e o risco para a economia circular

Por fim, a Resolução restringe a homologação de equipamentos recondicionados, como modems e roteadores, ao uso exclusivo em políticas públicas de inclusão digital. A iniciativa visa evitar a entrada indiscriminada de equipamentos de qualidade duvidosa no mercado formal. Por outro lado, é importante acompanhar se essa decisão restringirá em excesso os modelos alternativos de produtos, como equipamentos recondicionados ou reutilizados, que vinham ganhando espaço nos últimos anos por meio de negócios de reuso, startups e projetos sociais.

Ao limitar essa prática ao setor público, a Anatel corre o risco de restringir o acesso da população de baixa renda a equipamentos mais acessíveis, prejudicando a lógica da economia circular e o objetivo de inclusão digital em larga escala.

 

Considerações finais

A Resolução nº 780/2025 evidencia uma inflexão regulatória importante, que amplia o raio de ação da Anatel sobre setores estratégicos da economia digital. 

A proteção do consumidor, a segurança das redes e a confiabilidade da infraestrutura digital são objetivos legítimos, que devem ser alcançados por meios juridicamente adequados, com observância ao devido processo legislativo, ao princípio da legalidade e ao equilíbrio regulatório. A atuação das agências não pode ser transformada em um atalho para compensar a inércia legislativa, sob pena de gerar instabilidade normativa. 

 

  1.  Respectivamente, comercialização de produto não homologado, comercialização de produto homologado sem o respectivo selo Anatel de identificação, e utilização de selo Anatel de identificação, pertencente a outro equipamento, em produto não homologado.
  2. O § 2º do artigo 55 do Regulamento passa a vigorar com a seguinte redação: “As plataformas intermediadoras de comércio eletrônico (marketplaces) e as demais plataformas digitais que estejam envolvidas no processo de comercialização, ainda que somente realizando atividades de divulgação e propaganda, responsabilizam-se solidariamente com o vendedor que nelas anuncia pela comercialização do produto, inclusive pela divulgação de seu código de homologação nos anúncios e pela verificação de sua regularidade.”
  3. Vale lembrar que a Anatel é um dos órgãos que compõem o Comitê Nacional de Cibersegurança (CNCiber), criado no âmbito da Política Nacional de Cibersegurança, nos termos do Decreto 11.856/2023. A Anatel tem buscado agir fortemente nos temas que tangenciam o ambiente digital, incluindo plataformas digitais e Inteligência Artificial, tendo apresentado candidatura para se tornar o órgão regulador de ambos os assuntos, juntamente com o CADE e ANPD, que também possuem interesse em abraçar esses tópicos para a sua competência.

 

Por Juliana G. de Castro Neves e Carolina Mendonça de Barros, advogadas do Mendonça de Barros Advogados.

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