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STF inaugura nova era na regulação digital brasileira: a releitura do artigo 19 do Marco Civil da Internet

Em junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um dos julgamentos mais aguardados sobre a regulação da internet no Brasil. Ao reinterpretar o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), a Corte rompeu com o modelo que vinha sendo adotado há mais de uma década e consolidou um novo paradigma sobre a responsabilidade das plataformas digitais quanto aos conteúdos publicados por seus usuários.

A decisão, ainda pendente de publicação oficial, não apenas reconfigura o papel das empresas de tecnologia no ecossistema digital brasileiro, como também sinaliza uma mudança de postura institucional frente aos desafios contemporâneos da desinformação, do discurso de ódio e da erosão do espaço público digital.

O novo marco da responsabilidade civil

O ponto central da decisão foi a flexibilização da regra que condicionava a responsabilidade civil das plataformas à existência de ordem judicial prévia para remoção de conteúdo. A partir de agora, as plataformas podem ser responsabilizadas se, após notificação da parte lesada, não agirem com a devida celeridade para remover publicações manifestamente ilícitas. A exigência judicial, embora ainda presente em certos casos, deixa de ser um escudo absoluto, especialmente quando se trata de conteúdos impulsionados por robôs ou amplificados artificialmente, situações nas quais a responsabilidade passa a ser presumida.

Essa mudança acentua o dever de diligência das plataformas, exigindo delas uma postura mais proativa na prevenção e remoção de conteúdos que atentem contra direitos fundamentais. Em casos de gravidade extrema, como terrorismo, pornografia infantil e incitação à violência, o STF reconheceu o dever de indisponibilização imediata, sem margem para inércia ou relativização.

A ruptura com o modelo original do Marco Civil

O Marco Civil da Internet, sancionado em 2014, foi amplamente celebrado por sua tentativa de equilibrar liberdade de expressão e responsabilidade, estabelecendo salvaguardas contra a censura privada. O artigo 19, especificamente, era considerado uma cláusula de proteção ao debate público, ao condicionar a responsabilização à inércia frente a ordens judiciais. Essa estrutura, fortemente apoiada por instituições como o InternetLab e o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), foi duramente impactada pela nova interpretação.

O STF não chegou a revogar o artigo 19, mas promoveu uma “interpretação conforme” que altera profundamente seu alcance: introduz o dever de cuidado proativo e admite presunções de responsabilidade em determinadas circunstâncias, como o uso de impulsionamento pago e a disseminação automatizada de conteúdo. Trata-se de um afastamento do modelo reativo para uma lógica de governança ativa, em linha com normas internacionais como o Digital Services Act da União Europeia.

Parâmetros estabelecidos pelo STF

A tese firmada pela Corte traz uma série de novos elementos, entre os quais se destacam:

  • Reconhecimento parcial da inconstitucionalidade do artigo 19, quando sua aplicação impede a proteção de direitos fundamentais frente à omissão das plataformas;
  • Validade da notificação extrajudicial como mecanismo apto a gerar responsabilização, com base subsidiária no artigo 21 do Marco Civil;
  • Presunção de responsabilidade em casos de impulsionamento ou disseminação por bots;
  • Obrigação de remoção imediata de conteúdos manifestamente ilícitos;
  • Preservação da exigência de ordem judicial para comunicações privadas e crimes contra a honra;
  • Deveres estruturais de governança, como a manutenção de canais de denúncia, relatórios de transparência e a presença de representante legal no país;
  • Modulação prospectiva dos efeitos, respeitando a segurança jurídica.

A resposta institucional à crise do espaço público digital

O pano de fundo da decisão é inegavelmente político e institucional. Nos últimos anos, o Brasil vivenciou uma grave deterioração do debate público, marcada pela disseminação de desinformação eleitoral, ataques às instituições e radicalização por meio de redes sociais. O STF respondeu a esse contexto com um movimento interpretativo que tenta restaurar um mínimo de equilíbrio, mesmo à custa da estabilidade normativa do Marco Civil.

O diagnóstico implícito é claro: a autorregulação das plataformas mostrou-se insuficiente. A aposta agora é em uma responsabilização mais intensa, que force mudanças estruturais nas políticas de moderação e transparência das empresas de tecnologia.

Diálogo com o direito internacional

A nova orientação aproxima o Brasil de modelos regulatórios já em vigor na União Europeia. O Digital Services Act impõe obrigações de governança semelhantes às delineadas pelo STF, incluindo exigências de transparência algorítmica, auditorias e resposta rápida a notificações de conteúdo ilícito.

Na jurisprudência europeia, o precedente Delfi AS v. Estônia (TEDH, 2015) já havia reconhecido a possibilidade de responsabilização de plataformas por comentários de terceiros, quando há omissão diante de conteúdos evidentemente ofensivos. Ao seguir esse caminho, o Brasil alinha-se à tendência internacional de compatibilizar a liberdade de expressão com a proteção contra danos digitais.

Riscos e impasses: entre a proteção de direitos e a liberdade de expressão

Apesar do avanço em termos de responsabilização, o novo modelo não está isento de riscos. Entidades como a Electronic Frontier Foundation e o Center for Democracy & Technology apontam para a possibilidade de um “efeito resfriador” (chilling effect), em que plataformas, com receio de punições, passam a remover preventivamente conteúdos legítimos. Esse fenômeno, conhecido como overblocking, compromete o pluralismo e pode restringir o debate público.

A falta de critérios objetivos para o que constitui uma notificação válida, além da desigualdade de capacidades entre grandes e pequenos provedores, também alimenta um cenário de insegurança jurídica. Ainda que o STF tenha mantido salvaguardas específicas, como a exigência judicial para comunicações privadas, o equilíbrio entre proteção de direitos e liberdade de expressão tende a se resolver apenas na prática, caso a caso.

Conclusão: uma decisão necessária, mas insuficiente

A decisão do STF representa um divisor de águas na regulação da internet no Brasil. Ainda que não tenha alterado formalmente o texto do artigo 19, a Corte reposicionou seus efeitos, desenhando um novo regime jurídico de responsabilização das plataformas digitais. Esse novo marco é coerente com os desafios contemporâneos da desinformação em larga escala e da moderação algorítmica opaca, mas também abre espaço para efeitos colaterais preocupantes.

O problema é que, ao fazer isso por via judicial, sem a mediação do Legislativo, o STF assume um protagonismo regulatório que, embora compreensível diante da omissão parlamentar, é institucionalmente delicado. A ausência de uma legislação específica para plataformas digitais, como o ainda indefinido PL 2630/2020, o “PL das Fake News”, transforma a decisão em um arranjo provisório, dependente da contínua atuação do Judiciário para estabilizar o campo.

Em última instância, o julgamento do artigo 19 reforça um paradoxo da era digital brasileira: diante do colapso da autorregulação e da inércia legislativa, cabe ao Judiciário improvisar soluções normativas para problemas sistêmicos. O preço disso pode ser alto: insegurança jurídica, fragmentação jurisprudencial e o risco de uma regulação que, em nome da proteção, sacrifique a liberdade.

 

Por Juliana G. de Castro Neves e Carolina Mendonça de Barros, advogadas do Mendonça de Barros Advogados.

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